"Dia e Noite", M.C. Escher

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Planos não cartesianos

Não, não foi René Descartes o autor daqueles trechos citados no último post. Não pela primeira vez, pelo menos.

São trechos de duas obras de Aurélio Agostinho, mais conhecido como Santo Agostinho. Lá está o raciocínio do “cogito ergo sum”, a tentativa de comprovar que existe o eu. Mas a fama pelo cogito ficou toda com Descartes – que lembra esses trechos de Santo Agostinho até no estilo.

A teoria da relatividade especial, de quem é? Ela está associada inseparavelmente a Einstein no senso comum: o crédito ficou todo com ele. Mas na verdade é muito controverso até que ponto a contribuição dele foi tão inovadora assim, em relação aos trabalhos de Lorentz e Henri Poincaré, por exemplo. Há também quem diga que a primeira esposa de Einstein, a matemática Mileva Maric, é que fez todo o seu trabalho, tanto é que depois de se separar dela ele nunca mais teria publicado nada significativo. César Lattes endossava essa história: segundo ele, Einstein era uma farsa. É exagero; a comunidade científica dá todo o crédito a Einstein pela teoria da relatividade geral; a dúvida é só sobre a especial.

Os casos de grandes pensadores total ou parcialmente esquecidos são muitos. Julián Marías cita-nos um, no texto sobre Santo Agostinho que está linkado ali acima: “Uma pergunta crucial: por que há algo, e não somente o nada? É a formulação que Leibniz fará, e mais tarde Unamuno, e em terceiro lugar, Heidegger. Em geral, Unamuno é esquecido, mas ele diz isto e muito energicamente”.

Os cem mil cérebros que se concebem em sonho gênios como eu, se quiserem ser marcados pela história, podem mandar-nos suas grandes idéias atribuídas a outros, para que as publiquemos aqui. Garanto que citaremos a fonte: este é um blog disposto a fazer justiça no mundo das idéias.

Ah sim: este post é um plágio.

Plagio, logo existo. Porque há algo, e não somente o nada.

Será que o plano cartesiano é mesmo cartesiano?

2 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, meu caro, se faz parte da justiça atribuir a autoria de um pensamento a quem o teve primeiramente, o mundo intelectual é extremamente injusto. Fico lembrando do caso do Leibniz e do Newton... como saber quem foi o verdadeiro autor do cálculo diferencial/integral? Os caras se degladiaram e se odiaram muito enquanto viveram. A minha dúvida diz respeito à contribuição que toda essa briga proporcionou.

Da minha parte, penso que o impróprio é dizer que alguém é autor de uma idéia como se idéias pudessem ser objeto de propriedade. Quantos não devem ter sido os anônimos que em contexto histórico desfavorável para o reconhecimento de suas teses puderam ter sido os primeiros a pensar em algo que depois se tornou notório? E, se uma idéia gera bons frutos, podendo ser aplicada para solução de problemas das mais diversas naturezas, qual é a importância para quem vai aplicá-la saber quem primeiro pensou nela?

Na minha opinião, perdemos muito tempo investigando a relação entre o conhecimento e seus "autores". Acho que parte disso é justificado por certa vaidade, no sentido de que queremos ser prestigiados pelo fruto de nossas atividades (no caso, intelectual). Decerto, há casos em que entender essa relação ajuda a compreender o próprio sentido da idéia. Mas penso que, em geral, não é em sentido muito produtivo que nos dedicamos a tais investigações. Creio que muitas vezes fazemos isso com uma outra espécie de vaidade: demonstrar erudição por saber fazer a boa relação entre a idéia e o autor. Mas essas são apenas algumas considerações pessoais. Não as faço em tom de crítica.

Ex-Pirro disse...

Ora, eu, lembrando do saudoso Menocchio, não poderia concordar mais com você!

A questão da disputa pela autoria de idéias é mesmo, em grande parte, uma questão de vaidade.

Mas, talvez ela revele características importantes de algumas sociedades, porque não se trata de algo universal. A idéia de autoria não tinha importância em culturas orais e tradicionais. Na Idade Média, o escolasticismo tornou fundamental associar a idéia ao autor, ja que na autoridade dele é que ela se fundava. Isso é mais exagerado com os escolásticos, mas é afinal uma marca de praticamente todo o pensamento teológico (ao menos o que se baseia na interpretação de sagradas escrituras reveladas por Deus; pelo fato de ser Deus o autor, o texto tem autoridade).

Mesmo cientificamente, pode ser útil vincular a idéia ao autor - em prol da precisão, por exemplo, já que pode haver diferenças importantes, embora sutis, entre dois autores que aparentemente trabalham uma mesma idéia.

Restaria inútil, no entanto, a busca por quem foi o primeiro autor de uma idéia. Concordo com você, isto sim, parece ser realmente inútil: penso o processo de construção social de idéias como algo espiralado: os indivíduos recebem toda a influência de estruturas e expressam-nas toda vez que têm uma idéia, por mais inovadoras que possam ser. Mas, não se trata disso apenas - ou então a melhor imagem seria a circular. O indivíduo reformula criativamente a estrutura, as influências, de uma maneira singular. Por isso, toda idéia que eu possa ter será sempre nada mais que uma reformulação singular e criativa do que já existe - isso vale pra idéias tidas como revolucionárias e pra idéias tidas como puro plágio. Por isso é que digo: plagio, logo existo. E mais do que isso: existo, logo plagio.