"Dia e Noite", M.C. Escher

quarta-feira, 23 de abril de 2008

21 de abril e o brasileiro

Em outro texto no blog, discuti a relevância dos feriados brasileiros e heróis nacionais. Tiradentes em particular. A História ainda não está certa do papel dele na Inconfidência. De um lado, há quem diga que ele foi realmente um dos grandes líderes da revolução que não chegou às ruas. De outro, há quem diga que ele foi meramente o grande bode expiatório do movimento.

O fato da revolta jamais ter chegado às ruas talvez já fosse o suficiente para não comemorá-la. Espera-se de revoluções que derrubem bastilhas, derrubem tiranos, levantem barricadas. A Inconfidência não levantou nem mesmo a voz. Não sei ao certo, mas é possível que sejamos o único país a ter um feriado para boas intenções frustradas.

Tiradentes foi enforcado, teve o corpo “dividido em quatro quartos e pregado em postes pelo caminho de Minas”, de acordo com sua sentença. Foi declarado infame, assim como seus filhos e netos. Seus bens foram confiscados; sua casa, arrasada e salgada, “para que nunca mais no chão nada se edifique”. Isso tudo para servir de exemplo àqueles que quisessem se revoltar contra os impostos. Serviu mesmo. Na época, o imposto era de 20% sobre o ouro. Hoje, a gente paga quase 40% sobre qualquer coisa e, exceção feita a alguns democratas, ninguém diz nada. Aparentemente, a Inconfidência não nos legou grandes lições. Aprendemos mais enquanto nação com os malandros que, à época, preenchiam com ouro os santos de madeira.

Acredito que em 23 de abril já exista distância histórica o suficiente para falar do dia 21. Feriado de Tiradentes, o Joaquim José da Silva Xavier. O homem que foi traído e não traiu jamais a Inconfidência de Minas Gerais. Ônibus pela metade do valor. Segunda-feira, mas com um evidente ar de domingo. Não encontrei nenhuma palavra sobre Tiradentes nos jornais, nos diálogos com os conhecidos. Nada.

Nelson Rodrigues dizia que “o brasileiro é um feriado”. Possivelmente, esse é o grande mérito do dia 21 de abril e é assim que Tiradentes representa o brasileiro.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Antes do Tempo

"Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou."

Rodrigo S. M., narrador de A hora da Estrela, de Clarice Lispector.

O tempo sempre existiu ou ele teve um começo?

O tempo sempre existiu. Porque caso não existisse antes de existir, não haveria antes: não se poderia falar em antes nem em sempre nem em nunca caso não houvesse tempo. Não pode haver tempo antes do tempo. O tempo sempre existiu.

Paradoxalmente, no entanto, o fato de ter sempre existido não significa que não possa ter tido um começo. Apenas não se pode afirmar que tenha existido um tempo antes do tempo: porque antes do tempo não havia tempo, então não havia antes.

Não sei se isso é uma tautologia, um paradoxo ou ambos. Mas, seja o que for, revela que o fato de o tempo sempre ter existido não refuta a possibilidade de que tenha começado. Sim, é paradoxal. E, ao mesmo tempo, é tautológico. Existirá esse categoria, a dos paradoxos tautológicos?

Se sempre existiu, como pode ter tido um começo?

Quem sabe? Falar em começo do tempo e do universo é falar em Deus ou no nada. Sobre o nada, só sabemos uma coisa: ele nadifica. Já sobre Deus...

Quem tem a razão, Rodrigo S. M. e os gregos ou Santo Agostinho e os físicos contemporâneos?

Não sei. Cada um com a sua mitologia temporal.

Alguém entendeu este post?

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Nosso tempo

"Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III

E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.

IV

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI

Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII

Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme."

Carlos Drummond de Andrade.

É tudo verdade. Mas, eu sou contra a ocupação (ou invasão, como queiram) da reitoria da UnB.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Opa!

"O mundo se divide em dois tipos de pessoas: as que gritam Oba! e as que exclamam Epa!"
Ivan Lessa.

Outra divisão possível é entre as pessoas que perguntam "e daí?" e as que indagam "por quê?". As primeiras nunca querem saber. As segundas sempre querem.

Este blog, em geral, grita Epa! e pergunta por quê.

P.S.: depois de postar isto, vi que Diogo Mainardi escreveu sobre o assunto Oba!/Epa! na Veja. Não tinha visto a frase , só nesta entrevista de Ivan Lessa.

Digam Epa! a Mainardi.