"Dia e Noite", M.C. Escher

domingo, 28 de outubro de 2007

No que crêem os que não crêem?

“Brincadeira de criança, as opiniões humanas.”

Heráclito

Rodrigo S. M., narrador de A hora da Estrela, tem razão quando diz que “a verdade é sempre um contato interior e inexplicável”: não sei explicar porque creio naquilo em que creio, o fato é que creio – “Pensar é um ato. Sentir é um fato”.

Por que creio em algo? A melhor resposta talvez fosse: creio porque creio. Esse juízo decorre de uma valoração subjetiva, uma intuição instintiva, assim como qualquer outro que pudesse fazer. Isso não significa que não forme minhas opiniões influenciado também – e predominantemente – por argumentos racionais; mas crer na razão é também subjetivo e intuitivo, de modo que apenas às vezes escolhemos ser (ou acontece de sermos) convencidos por ela.

Mas o “porque sim” ou o “creio porque creio” não costuma convencer as outras pessoas – vontade que nós costumamos ter. Para persuadir alguns, temos de dar ao nosso discurso uma aparência racional; outros poderão concordar conosco se apresentarmos argumentos de autoridade; outros poderão ser convencidos por uma poesia ou uma imagem.

É difícil evitar os exageros de posições extremistas: por um lado, a tentação de transformar a nossa visão sobre determinado assunto “na verdade” sobre ele; por outro, a de se negar que nossas opiniões tenham qualquer validade ou utilidade. O primeiro ponto de vista ignora que o conhecimento humano é uma criação humana e, como tal, incompleto, histórico, valorativo, subjetivo, cultural... O segundo compreende o que o primeiro ignora, mas, depois de negar o conhecimento absoluto, acaba por negar também o relativo, não o afirmando como conhecimento.

Sendo o conhecimento humano, demasiado humano, ele não é absoluto, mas isso não o invalida; é esse conhecimento que criamos e utilizamos – “Sou humano, e nada do que é humano me é estranho”, disse Terêncio. Desprezar nossas verdades relativas e falhas pelo fato de elas não serem divinas (absolutas) é para quem quer ser Deus. Eu sou humano. Se não há verdade absoluta, se “a verdade é dividida em metades diferentes uma da outra”, como disse Drummond, isso não nos impede de optar pela nossa; cada um “conforme seu capricho, seu ilusão, sua miopia”.

Brinquemos, então, de criar e escolher verdades – mas a sério, com a seriedade com que brinca uma criança. Nunca nos esqueçamos de que nossas verdades são produto de uma brincadeira de criança. E nunca nos esqueçamos de que tal brincadeira é o que fazemos de mais sério em nossas vidas.

Eu, de acordo com o meu astigmatismo, vou escolhendo as metades que me agradam.


P.S.:

VERDADE

Carlos Drummond de Andrade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

[A porta da verdade? Lembremos do próprio Drummond:

"Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta" ...

"E agora, José?"

"E agora, você?"]

P.P.S.: este texto tem já mais de um ano. Mas, por incrível que pareça, não mudei de opinião desde então sobre o assunto tratado nele. Devo estar envelhecendo - agora vejo que não foi à toa que me disseram isso outro dia...




quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Chamadas Telefônicas

“Zooey estava em plena forma, no seu jeito sonhador. O apresentador sugeriu como tema os projetos de novos bairros residenciais, e a garota dos Burke disse que odiava essas casas que parecem todas iguais – referindo-se às ruas projetadas com fileiras de residências idênticas. Zooey disse que elas eram ´legais´. Que seria muito bom voltar da escola e entrar na casa errada. Jantar por engano com as pessoas erradas, dando um beijo de despedida de manhã em todo mundo, pensando que eles eram sua própria família. Disse que seria até bom se todos fossem iguais. A gente ia pensar que todas as pessoas que encontrasse eram sua mulher ou sua mãe ou seu pai, ficariam todos se abraçando, aonde quer que fossem, seria mesmo ´muito legal´”. (J. D. Salinger, no livro Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira)

Gosto de pensar que no Brasil – o país do homem cordial – algo semelhante seria possível. Ao menos nas casas mais cordiais, é possível sim entrar e rapidamente se tornar família.
No entanto, ninguém sai por aí entrando em qualquer lugar. O que se tem de mais próximo são as chamadas telefônicas. Não há quem nunca tenha errado uma ligação.
Minha casa recebe não menos que cinco ligações erradas por dia. Existem duas farmácias, uma escola, uma empresa do tipo “disque-pesquisa” e uma limpadora de fossas com números semelhantes. No mais das vezes, as ligações erradas são lacônicas e rudes. Atender um engano e escutar um pedido de desculpas é raro. Ter uma conversa agradável é motivo de comemoração.
Eu já tive motivos de comemorar. Durante três anos seguidos, recebi no dia do Natal uma ligação errada da mesma pessoa. Uma senhora fazia diversos votos de felicidade, prosperidade, saúde e tudo mais que supostamente devemos desejar em semelhante data. E quando eu respondia, desejando-lhe tudo igualmente (ou em dobro, no último ano), ela estranhava e perguntava se não era a casa de Fátima. Na ausência de Fátima, desejava tudo novamente, dessa vez pra mim e pra minha família.
Há alguns meses, numa manhã de segunda-feira, por volta das dez horas, recebi outra ligação errada, de uma outra senhora. Pela voz embargada, postulei que estivesse alcoolizada. Queria falar com Rita. Como não havia Rita, decidiu falar comigo mesmo. Perguntou meu nome, não o entendeu e pediu que eu soletrasse. Pediu que eu soletrasse novamente, dessa vez mais devagar. E então se apresentou: “Meu nome é Verônica. Verônica, que nem na musiquinha. Quer que eu cante a musiquinha?”. “Sim, por favor”. “Veronicaaaaaaaa... Veronicaaaaaaaaaaaaa”. Conversamos por uns 20, 30 minutos. Conversa bastante agradável. Verônica tinha um cachorro, trabalhava com contabilidade e freqüentava uma igreja próxima à minha casa. Era um tanto insegura. Perguntou mais de uma vez se eu estava gostando de falar com ela. Quando se despediu, disse que ligaria novamente outro dia. E se corrigiu: ligaria todo dia.
Verônica nunca mais ligou. Mas deixou a impressão de que não é errado pensar que todas as pessoas que a gente encontra são mãe, pai, irmã...

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Sinapses e Aplausos

- Shh... O maestro está entrando. Nós deveríamos aplaudir.
- Por quê? Ele ainda não fez nada.

Acredito que todo mundo já deve ter visto uma daquelas imagens que, a princípio, parecem apenas uma paisagem, mas, à medida que se olha com atenção, é possível descobrir vários rostos e perfis humanos. Ou então aqueles quadros com amontoados de frutas que, no todo, formam uma face. Acontece que o nosso cérebro é incrivelmente capacitado na tarefa de perceber e visualizar rostos humanos. Afinal de contas, nós convivemos o tempo todo com pessoas e grande parte da nossa percepção consciente e da nossa memória está voltada para seus rostos. Assim, o cérebro se prepara para ver rostos, mesmo que eles não estejam objetivamente lá.
Do mesmo modo, o cérebro humano é incrivelmente capacitado para imaginar. E isso nos leva a projetar o que pensamos em situações que, objetivamente, também não estão lá. É o caso do rapaz que andava sozinho num lugar esquisito à noite, preocupado com a possibilidade de ser assaltado: quando alguém passou ao lado e lhe perguntou a hora, ele subitamente retirou o relógio do pulso, o entregou e saiu correndo.
Isso também ocorre com nossos desejos, esperanças, sonhos. O cérebro humano trata de distorcer a realidade para que ela se encaixe – e depois se descobre errado. Alguém pode argumentar: triste aquele que não se ilude, que não se engana! E não deixa de ter razão.
O problema não está no engano. Nos enganamos o tempo todo. O problema está nos aplausos. Baseado em evidência nenhuma que não os próprios desejos e esperanças, aplaude-se e festeja-se o que está errado. “E um erro traz um erro”, já dizia Sófocles. Às vezes, só se percebe o engano tarde demais.

O diálogo lá de cima é de uma tirinha da turma do Snoopy. Não sei como postá-la aqui. Mas sei que, como a personagem, só devemos aplaudir quando termina.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A Profecia de Nelson Rodrigues

Certas pessoas são tão geniais em determinadas atividades que nos dão a impressão de que seriam igualmente gênios fazendo qualquer coisa. Se Isaac Newton, ao ser atingido por uma maçã, não tivesse pensado na lei da gravitação universal, mas apanhado duas ou três outras maçãs e começado a fazer malabarismos, teria sido igualmente revolucionário, igualmente importante. Se Nelson Rodrigues - dramaturgo, reacionário, supostamente tarado – tivesse se dedicado a ler mãos ou bolas de cristal, teria previsto praticamente todos os acontecimentos dos últimos 17, 18 anos.

Em 1968, Nelson afirmou que, enquanto a esquerda que lá estava não fosse substituída até o último idiota, não iria acontecer nada, “rigorosamente nada”. “Sem tal substituição, nada é possível e tudo continuará perdido e cada vez pior”. A esquerda não foi mudada. Nelson não completou o raciocínio: não disse que, enquanto a direita não fosse substituída até o último idiota e que enquanto esquerda e direita não fossem substituídas até o último canalha, tudo continuaria perdido. (Obviamente, muita coisa mudou, muita coisa melhorou. Mas apenas um idiota da objetividade diria que a afirmação é errada).

Em 1968, Nelson afirmou que “os idiotas perderam a modéstia, a humildade de vários milênios. Eles estão por toda parte. (...) E, de mais a mais, são numericamente esmagadores. Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem”.

Em 1968, Nelson afirmou que se estabelecera o “ódio ao herói”, o ódio aos que lutavam sozinhos, aos que resistiam. “Os que capitularam precisam destruir o que não se rendeu”.

Em 1968, Nelson antecipou os escândalos de José Dirceu e companhia, as declarações de Almeida Lima sobre o caso Renan Calheiros e a canalhice que fizeram ontem aos senadores Pedro Simon e Jarbas Vasconcelos quando os afastaram da Comissão de Constituição e Justiça.